Capítulo 01
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ma segunda-feira do mês de dezembro de 1970.
– Toninho!
– Já vou, mãe.
– Vá buscar sua irmã na escola.
– Tá... Já vou!
Era um dia fresco de verão, embora pouco comum para os padrões brasileiros. Toninho era um menino negro e muito feliz, de uma família de oito irmãos. Seu pai trabalhava em uma fundição na cidade e sua mãe era diarista e não conseguia ganhar muito, pois nem todos aceitavam uma senhora negra para trabalhar em sua casa. Sendo o segundo filho do casal, Toninho cuidava dos irmãos menores, já que Carlão havia tomado os caminhos nada convencionais das drogas e se afastado da família, deixando os pais à beira da loucura. Há dois anos, Carlão fora preso por tráfico de cocaína e estava jurado de morte, se não pagasse sua dívida com os outros traficantes ao sair da cadeia.
Passados dois anos e seis meses de sua prisão, Carlão saiu em liberdade condicional e foi direto para a casa de seus pais. Decidido a mudar de vida, jurou para seus pais e para si próprio que dali em diante recomeçaria do zero.
No primeiro dia de sua liberdade, Carlão foi procurado por um de seus antigos fornecedores, que não estava disposto a esquecer sua dívida e tornou a ameaçá-lo de morte, caso não a pagasse.
Carlão pediu um prazo, disse que iria arrumar um emprego para pagá-lo em pouco tempo.
Passaram-se dois meses e Carlão não conseguiu o dinheiro. O traficante, que trazia em seu coração centenas de pedras, jurou sua família de morte: primeiro seus pais e depois seus irmãos, amontoando os corpos uns sobre os outros.
Depois de uma semana, não tendo recebido seu dinheiro, o traficante voltou. Eram cerca de duas horas da madrugada e todos dormiam. Ele e seus comparsas metralharam o barraco da família de Carlão, matando a todos sem piedade. Todos dormiam abraçados uns aos outros, pois no barraco só havia três camas. Somente Toninho, que dormia no chão do banheiro por trás da porta que dava acesso a um pequeno lavatório, passou despercebido pelos assassinos impiedosos. Como se não bastasse tamanha crueldade, Carlão foi queimado e atirado em um pequeno córrego atrás do seu barraco. Em seguida, atearam fogo ao barraco e Toninho foi retirado às pressas por seus vizinhos quando perceberam a fuga dos bandidos e correram na intenção de salvar a família.
Ao acordar, Toninho percebeu o ocorrido e, desesperado, correu para os destroços do barraco, procurando inutilmente sobreviventes. Quando percebeu que já era tarde para isso, calou-se para sempre. Sua família havia sumido do mapa, mal sobrara qualquer pedaço de pano, um brinquedo ou seus documentos para provar sua existência no mundo. Não havia mais nada, além de sujeira, cinzas, saudade e tristeza.
Toninho foi levado ao Juizado da Infância e da Juventude, que o abrigou por algum tempo. Em seu rosto, ficaram marcas de queimaduras e uma fisionomia dura e devastadoramente agressiva, embora seus gestos não expressassem isso. O juiz nomeou a avó paterna para cuidar do menino. Ela tentou rejeitar o garoto. Mas, pela insistência da justiça, acabou por levá-lo para sua casa, onde o maltratou por longos anos.
Toninho sofreu de sua avó as mais cruéis maldades, pois ela o culpava pela morte de seu filho único, o pai do garoto.
– Por que não morreu no lugar de seu pai, negrinho maldito e inútil? – dizia sempre ela, sob efeito de álcool.
Além dos maus tratos da avó, na escola os garotos o discriminavam por sua cor e por ser mudo. Havia um colega em especial, que morava na rua da qual a sua era uma pequena travessa. Esse garoto, dotado de pele clara, cabelos loiros e olhos verdes, tratava-o com uma estranha crueldade. Seu nome era Marcelo, educado sob forte influência do racismo, personificado por seu pai.
Em todas as atividades esportivas da escola em que o professor deixava os alunos escolherem os seus times, o tal Marcelo, se não fosse o selecionador, convencia seus colegas a tirá-lo do time e se divertia ao vê-lo chorar à beira da quadra. Marcelo era filho de um militar do exército. Herdou de seu pai uma arrogância e uma crueldade sem fundamentos.
Os anos foram passando e a perseguição de Marcelo e sua turma foram minando os nervos de Toninho. Certo dia, em um jogo de futebol, Toninho, muito mais hábil que Marcelo, deu-lhe um drible, depois conseguiu fugir da falta traiçoeira do Juca em defesa da honra de Marcelo e marcou um golaço merecedor de uma medalha. Depois da partida e de enfrentarem a zombaria dos colegas e dos rivais, os dois garotos e mais três covardes atacaram Toninho na volta para casa e o feriram a ponto de fazer um corte profundo em sua face direita.
Ao chegar em casa, Toninho ainda foi castigado severamente por sua alcoolizada avó, por arrumar confusão com o filho do militar que, para ela, era um homem distinto.
A infância de Toninho foi cheia de maldades e misérias, atiradas de corações de pedra por todos os lados. Já adolescente, conheceu um velho médico chamado Antenor que, sempre que o via passar por sua rua, tratava-o com carinho e gentileza, bem diferente dos demais a sua volta.
Toninho era ainda muito arredio e fugia sempre que o via, atravessando para a outra calçada, achando que ele era mais um que se aproximava para se aproveitar ou judiar dele.
Certo dia, depois de mais uma agressão da turma de Marcelo, Toninho sofreu um desmaio ao passar pela calçada do Dr. Antenor. Foi recolhido pelo velho médico e levado ao pequeno consultório que ele mantinha na própria residência para atender pessoas necessitadas da cidade, embora trabalhasse em um hospital na capital.
Minutos depois, o garoto acordou já com os ferimentos cobertos e tratados e, ao deparar-se com o médico a sua frente, correu desesperadamente para a rua em direção a sua casa. Ainda sem entender o que havia acontecido, o garoto mal percebera os ferimentos e os curativos feitos pelo doutor e sua mulher, Sara.
Dr. Antenor não tinha filhos e, ao lado de sua linda mulher, levava uma vida confortável em sua mansão, com um jardim bem planejado e cuidado por Dona Sara, que fazia daquele lugar um verdadeiro pedacinho do céu.
No dia da fuga de Toninho do consultório, ao ver seu marido preocupado com o garoto, Dona Sara abraçou-o, confortando-lhe o coração, e com muita sabedoria o aconselhou:
– Meu amado marido, contenha a sua tristeza! Esse garoto deve sofrer as mais variadas torturas da vida. Seu coração é arredio, mas a sua alma é boa. Eu vejo isso nos olhos dele. Tenha cuidado para não lhe dar expectativas vãs, que poderiam levá-lo a um estado emocional muito pior do que o atual.
– Claro, querida! Fico muito grato por sua compreensão e seus conselhos tão sábios. Eu não esperaria nada menos de você. Nestes cinquenta anos de matrimônio e nesta infinita solidão a dois, percebemos que o dinheiro para nós não tem tanta importância e que o valor das pessoas é muito maior, independente de classe social ou cor de pele.
O velho Antenor já havia passado dias duros, por uma decepção muito grande no ambiente familiar. Deprimido, fora parar nas ruas como mendigo. Assim permaneceu por um bom tempo, até que, estimulado pela vida, voltou a exercer a medicina, recuperou-se e seguiu prosperando.
No dia seguinte, escondido entre os galhos de um arbusto, Toninho observava o velho casal colher e podar as flores do seu jardim. De maneira instintiva, Dona Sara, mesmo sem se voltar para o garoto que estava atrás dela, disse-lhe com generosidade:
– Por que não entra e vem nos ajudar?
Toninho, assustado com a percepção da mulher, sentou-se na calçada sem saber o que fazer.
– Venha, precisamos de ajuda! – continuou docemente Dona Sara, enquanto o velho Antenor os observava com os olhos marejados de lágrimas.
Devagar, Toninho se aproximou do portão de entrada, feito de madeira vermelha e muito comum na época, que estava semiaberto, como se já o esperassem. O garoto entrou desconfiado, escondendo-se à sombra de uma mangueira que ficava no canto direito do terreno da casa principal. Dr. Antenor pediu que pegasse o saco de estopa que estava ao seu lado e recolhesse as folhas secas espalhadas no jardim para serem removidas dali.
Toninho, aos poucos, foi se aproximando do casal que, com doçura e tato, buscava conquistá-lo.
Embora fosse estimulado constantemente pelo casal, o sorriso do menino mudo insistia em não aparecer. Dia após dia, sua aproximação era feita por gestos, como um aceno com a cabeça ou um dedo apontado para o local onde deveria deixar uma caixa ou pegar uma fruta para se alimentar. Toninho ganhava agrados, como peças de roupas ou moedas para comprar um lanche melhor para a escola, mas pouco sabia o casal sobre a história do garoto.
Uma coisa ainda intrigava Dr. Antenor e sua esposa. Quando lhe faziam perguntas, o garoto não respondia e logo seu semblante se entristecia. Presumindo que aquelas perguntas causavam-lhe muita dor, calavam-se em seu respeito.
3 comentários:
Nossa que lindo ... deu vontade de terminar de ler! Parabéns
Sucesso
muito legaaaaaal
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