Bullying
Um ato impensado, um tormento em minha vida.
Síndrome de Tourette ou Tique Nervoso
Por: José Sandoval
Revisado por: Maria Eliane
Direcionado a todas as pessoas que se sentem pressionadas ou constrangidas por não ser exatamente o modelo, o estereótipo que determinaram que fossem.
São Paulo
2011
Todos os direitos reservados ao autor, embora a sua divulgação esteja liberada para cópia a cada capítulo postado.
Prefácio
Meu nome é Jose Sandoval. Sou casado há dezesseis anos, pai de dois filhos e, até este momento, tenho uma vida familiar que adoro.
Trabalho com a divulgação de cursos profissionalizantes e viajo por todo o Brasil. Sou escritor de livros voltados ao trabalho e romances com perfil de livros de autoajuda. Sou nordestino, nascido em uma pequena cidade do agreste onde vivi alguns dos melhores momentos da minha vida. Toda vez que me refiro a Altinho, minha cidade natal, sinto uma paz imensa. Lá, deixei plantada a semente da paz que busco no fundo da minha imaginação sempre que preciso.
Muito coisa na vida tem valor diferenciado para mim. Entre elas, os meus amados e insubstituíveis filhos, que são a coisa mais preciosa que existe. A família sempre foi o meu porto seguro, mesmo com todas as nossas diferenças. Não falo só do meu sangue, mas também da família da minha mulher. Nos momentos mais difíceis, pude contar com essas pessoas e sei que, sempre que eu precisar, eles estarão a postos para me ajudar.
Como você pode ver, comecei mais um livro com sentimentos verdadeiros que se somam no resultado final do meu trabalho. Sou um conquistador por natureza. Conquistei muitas mulheres e muitos amigos que continuam comigo. Conquistei uma carreira profissional que demorou a se solidificar e, graças a Deus, a qualquer momento ela pode se romper. Digo isso porque a segurança me constrange. Ela me impede de crescer e de evoluir. Eu sou do tipo de pessoa que precisa acordar pela manhã e ter que fazer o seu salário. Que vive relacionamentos amorosos que me obrigam a conquistar a mesma pessoa todos os dias. Que precisa descobrir um país por dia. Que não tem certeza se será salvo por Jesus quando ele voltar, porque não ter segurança da salvação me faz um cristão mais digno, que procura se corrigir sempre, para não ter o azar de ir tomar um cafezinho quente no inferno.
Hoje, especialmente neste momento, estou numa cidade linda do litoral paulistano, São Sebastião, num hotel simples onde me sinto confortável para falar de mim para você, meu querido leitor.
Depois de andar o dia inteiro vendendo os meus livros pelas ruas desta cidade, decidi começar hoje a contar para você a minha história para lá de especial.
Como disse antes, sempre que preciso de paz e conforto mental, busco em minha mente a minha querida Altinho, minhas lembranças da infância, e aí consigo fazer o que preciso.
O padroeiro de Altinho é São Sebastião e sua arquitetura se parece um pouco com a arquitetura da cidade onde estou. Somadas essas duas coisas, a cidade e o padroeiro, sinto-me seguro para falar de mim para você. Leia agora o que eu tenho a dizer. Quem sabe, você possa me ajudar o diminuir o preconceito e a dor dos portadores, como eu, da Síndrome de Galles de La Tourette.
Saiba agora como tudo começou.
José Sandoval
01
Onde tudo começou
Altinho, PE, terça-feira, dia 20 de junho de 1967. Eram aproximadamente 11 horas da manhã quando minha mãe começou a sentir as contrações. De imediato, foi chamada a parteira da cidade, chamada Dália, que mesmo sem ter batizado as crianças que trouxera à vida era chamada de madrinha por todos. Lembro- me do seu jeito sério e amoroso. Pedir sua benção quando criança era para mim como beijar a mão do padre cada vez que o via sentado numa cadeira de madeira na frente da igreja da cidade. Dália era considerada uma médica e servia a todos com o mesmo carinho.
Meia hora depois, segundo minha mãe, eu vinha ao mundo saudável e forte, como era o sonho de Dona Severina e do João Alfaiate, como era conhecido meu pai. Ela não quis confessar isso, quando nos falamos há poucos dias para relatar as memórias para este livro, mas, segundo um historiador chamado Sandoval, nunca antes na história deste país se viu criança tão linda e iluminada, se é que você me entende!, meu querido leitor.
Brincadeiras à parte, como todo conto de fadas tem uma ponta de perda e de dor, contarei agora o que aconteceu antes desse dia.
Três acontecimentos que podem ter mudado a minha vida
1. Aos dois meses de gestação
No início da gravidez, aos dois meses, minha mãe foi surpreendida por uma notícia fatídica que sacudiu a minha família. Minha mãe até hoje fala com muito pesar nessa perda. Minha avó paterna, Dona Vicência Gracinda da Conceição Soledad, faleceu. Foi uma grande surpresa para a família. Imagino a dor que meu pai deve ter sentido, pois a mãe é para o filho o seu porto seguro. Isso vem confirmar uma tese que eu defendo. Quando a família tem a perda de alguém muito importante, vem uma criança nova para diminuir sua tristeza. Talvez eu tenha ajudado meus pais e meus tios mais do que eu possa imaginar.
2. Aos seis meses de gestação
A cidade de Caruaru há muito tempo sofre com um problema no subsolo que não se conseguiu explicar claramente até o momento. A propósito, peço desculpas se estiver mal informado sobre isso, mas é tudo que eu sei até o momento. Em Caruaru, ocorre de tempos em tempos grandes estrondos, seguidos por tremores mínimos que se refletem também em Altinho e outros municípios do agreste pernambucano. No sexto mês da minha gestação, ocorreu um desses tremores, em grande escala, e minha mãe tomou um baita susto, o que colocou em risco a nossa vida.
3. Oito meses de gestação
Minha mãe estava bordando cueiros, como fez para o enxoval de cada um de seus filhos. Estava na sala, quando ouviu gritos no quintal e foi ver o que era. Lá fora, encontrou sua vizinha com as mãos ensaguentadas, trazendo consigo seus dois filhos pequenos, pois o marido tentara matá-la e ela precisava fugir dele. Minha mãe prestou socorro à mulher e, por sorte, algo pior não aconteceu.
Resumo da história
Não há nada que comprove que a síndrome em questão tenha se iniciado em mim como consequência desses fatos. Em nenhuma das literaturas que li sobre o assunto, encontra-se causa provável para essa doença. Ela ainda é um mistério para todos.
Talvez o próprio organismo da minha mãe tenha reagido de maneira a produzir algum tipo de enzima que pudesse ter se refletido sobre nós dois. Desde a minha infância, pelo menos até onde me recordo, ela sempre sofreu com o sistema nervoso. Mas ela não tem a síndrome.
Às vezes, fico me perguntando por que tive que vir com isso. Às vezes, eu me pego chateado com as consequências morais e físicas dessa síndrome, que mexeram com toda a minha vida. Sofremos com a angústia de não sermos tratados como pessoas comuns. Sofremos quando as pessoas educadas nos olham disfarçadamente, pensando que não percebemos que estamos sendo olhados. O que mais me dói não é quando alguém me pergunta o que tenho, assustado, mas quando riem descaradamente. Na verdade, eu não tenho nada. Não sou pior que ninguém. Não possuo nada que me impeça de ser tratado de maneira absolutamente normal, pois eu, José Sandoval, cheguei a um ponto na minha relação com a doença em que não sou mais uma vítima dela, mas alguém que está para acabar com a festa e o estrago que ela fez em meu corpo e em minha vida. Para mim, ela não é maior do que eu. Aqui na terra, abaixo de Deus, quem me domina é o meu cérebro, que é maravilhoso. Em mim, não entrarão mais remédios de tarja preta ou de qualquer cor que me tirem a vontade e a liberdade de viver. Eu sou maior que aquilo que me fez sofrer. Hoje eu dou as ordens a meu próprio corpo, e quem estará sempre no controle daqui para frente sou eu e mais ninguém!
Li o seguinte num livro de T. Harv Erher que vem ao encontro da minha conduta desde 2003 (quando abandonei todos os tratamentos medicamentosos que fazia e decidi me curar através do domínio de minha mente sobre a doença e perseguir a cura até o ultimo suspiro da minha vida):
“PSA=R: o pensamento nos leva a um sentimento, o sentimento nos leva a uma ação e tudo isso junto leva a um resultado do tamanho do nosso esforço e merecimento”.
02
Primeiros sinais da síndrome
Depois do meu nascimento, tudo correu muito bem. Onde eu nasci, havia condições financeiras básicas ao alcance da minha família, e nada de anormal acontecia, além de pequenos acidentes normais para uma criança hiperativa como eu era. Eu tinha uma cidade inteira para correr de um lado para o outro e muita árvore para subir e brincar com meus amigos. O Rio Una, que é fonte inspiradora para poetas, oferecia um leito raso onde nos banhávamos de vez em quando ao final do dia.
Dos seis para os sete anos, comecei a ter grunhidos na garganta e repetir palavras em som baixo. Não conseguia parar de repeti-las. Algum tempo depois, comecei a piscar constantemente os olhos e torcer a boca e o nariz. Na minha família, isso começou a gerar certa polêmica e alguns dos parentes diziam que era frescura minha ou “macacoa” (imitação de macacos). Essas palavras doíam muito em mim mas, como toda criança, eu esquecia rápido e logo estava implorando carinho para aqueles que me agrediam de vez em quando.
Tenho uma vaga lembrança de um homem que tinha algo parecido com a síndrome em grau avançado e, para minha tristeza, lembro-me de ter, junto com alguns amigos, zombado dele, imitando seus gestos. Como vocês podem perceber nessa situação, em algum momento da vida todos nós praticamos bullying. Honestamente, não sei quantas pessoas magoei com brincadeiras sem graça, mas peço agora um milhão de desculpas se preciso for por meus atos impensados e cruéis.
As crianças geralmente não têm muita consciência do que fazem para outras pessoas, mas o fazem por embalo, por achar graça nos atos dos maiores, e muitas levam essas ações para a fase adulta. Todos nós crescemos inspirados por modelos, e muitas dessas crianças não têm dentro de casa um grande modelo a seguir e, quando isso acontece, buscam por ele fora, nas ruas ou nas escolas.
Hoje em dia, o professor é penalizado pela falta de interesse dos pais de alunos em educar os seus filhos, justificando seu ato ou delito moral por ter que trabalhar demais para o sustento da família. Vejo isso em minhas caminhadas de divulgação do meu trabalho literário e de cursos profissionalizantes em escolas públicas em todo o País, algumas delas totalmente degradadas, com carteiras rabiscadas e quebradas. Encontro professores deprimidos e cansados do desrespeito de alguns alunos que ainda não perceberam que fazem mal para si próprios. Esses alunos praticam um tipo de bullying contra eles mesmos quando danificam o patrimônio público. Agem como os prisioneiros que queimam em rebeliões seus próprios colchões, que ficam um bom tempo para serem recolocados. Não basta não prestar atenção no que o professor diz, que é para o seu bem: eles não respeitam nem os poucos colegas que querem ser alguém.
Lembro-me de uma mulher incrível que mudou, depois da minha mãe, toda a história da minha vida. Minha querida professora, Hilda, da quarta série. Ela me ensinou que o Brasil seria um dia uma grande nação. Mostrou que não importa o quanto as estatísticas do governo digam que eu não tenho futuro, pois o futuro é meu e eu tenho poder sobre ele. Presto aqui minha homenagem à melhor professora que tive e que, como um anjo, está hoje no Céu, onde é o seu merecido lugar.
Valores como os que me ensinaram essas duas maravilhosas mulheres e muitos outros professores só puderam ser aproveitados por mim porque eu estava a fim de ouvi-los. Não basta a escola ter diretores e professores interessados. Muita gente, mas muita gente mesmo, não está minimamente interessada em nada que possa gerar algum benefício aos outros. Muita gente que ocupa cargos públicos, desde o maior até o menor poder possível, pensa somente em si e nos seus.
Não vejo, hoje em dia, uma solução rápida para a Educação no Brasil. Fico triste, muito triste, quando vejo notícias nos jornais que trazem casos de agressão de alunos contra professores e vice-versa, por falta de educação moral nos lares do País. É incrível o descaso com a escola pública por parte dos governos. O Estado de São Paulo continua tratando a Educação como se fosse uma empresa sem plano de carreira, onde todos podem tudo e ninguém sabe nada. Onde o aluno não passa de ano pelo seu esforço, por tirar boas notas, mas pelo valor que custa para os cofres públicos ao final de cada ano. Todo ano, vejo crianças entrarem e saírem de séries sem apoio e nenhuma melhora. As famílias que ainda podem pagar aulas de reforço conseguem ver seus filhos ingressarem em alguma faculdade federal. Entretanto, milhões de outras choram desesperadas sem saber o que fazer e “correm atrás” do jeito que podem.
É muito triste passar em frente aos painéis do “impostômetro” espalhados pelas maiores cidades do País e nunca, mas nunca mesmo, saber ou enxergar onde são investidos os bilhões que se arrecadam e batem recordes todos os anos. É muito triste chegar a uma escola pública da minha cidade para falar de sucesso profissional e ver diretores implorando para o comandante da polícia enviar uma viatura da ronda para coibir os traficantes que agem dentro da escola e ouvi-lo dizer que temos apenas uma viatura da ronda escolar para uma cidade de 300 mil habitantes. O Estado de São Paulo não é na verdade a locomotiva do Brasil. Se é, esqueceram de dizer aos muitos governadores que por aqui passaram.
Diretor de escola em São Paulo deveria ganhar um salário a mais para trabalhar como policial, já que tem que arriscar a vida enfrentando traficantes na porta ou dentro da escola. O uniforme dos professores, em breve, precisará vir com um kit especial de defesa pessoal se continuar dessa maneira. Não posso deixar de falar das pessoas que ocupam cadeiras escolares sem o menor talento para a coisa, que não se interessam em melhorar a qualidade do ensino, bastando simplesmente receber seu pagamento certinho todo mês. É triste, mas é a mais pura realidade.
Bullying não é só cometido de pessoa para pessoa, mas também com o constrangimento moral que todo dia assistimos na televisão e lemos nos jornais de todo o País.
Que vergonha!
03
A escola
Gostaria muito de falar dessa fase da minha vida com muita alegria. Gostaria de contar a você, meu querido leitor, que fui um aluno exemplar. Que tirava boas notas, que era muito elogiado em todas as reuniões a que minha mãe comparecia. Estaria falando da minha irmã Sandra e não de mim. Ela, sim, tirava boas notas e se comportava como um verdadeiro aluno deve se comportar.
Quando minha mãe saía da escola da Sandra para ir a minha reunião, passava na igreja matriz de Altinho e acendia muitas velas para São Sebastião em meu nome. Aproveitando a viagem, pedia a presença de Nossa Senhora da Paciência para acompanhá-la até a minha sala de aula, pois, com certeza, a experiência não seria nada agradável.
Hiperativo, eu era sempre o primeiro aluno da classe. O primeiro porque, se ficasse no fundo da sala, ninguém conseguia estudar direito. Na minha cabeça, também ficava a marca da tinta dos centímetros da régua da professora, já que isso era parte do método de educação da época. Você pode não acreditar, mas comigo deu muito certo.
Eu simplesmente não parava quieto. Uma das características do portador da síndrome é justamente essa. Não sou médico nem psicólogo e, na verdade, tudo que eu apresentar aqui é fruto de pesquisas que fiz ao longo da minha vida. Eu não tinha, até oito anos atrás, a menor noção do que acontecia com o meu corpo. No entanto, sempre me mantive resignado em relação a isso.
Nessa época, no início da minha vida escolar, comecei a dar pulinhos com uma perna só. Dava um passo para frente com a perna esquerda e dois com a direita. Nessa época, minha mãe conseguiu pagar aulas de reforço na escolinha particular de Dona Elizete. Era uma sala em sua casa, onde ela atendia alguns alunos, além de mim. Lá, o chão era de madeira, e me lembro que percebi que, quando pisava com meu sapato social escolar, o piso fazia um barulho mais forte. Comecei meio a que dançar alguma coisa parecida com o sapateado. Na verdade, era mais um hábito que eu começava a adquirir. Quem não conhece a Síndrome de Tourette pode confundi-la facilmente com TOC – transtorno obsessivo compulsivo. Essa doença é caracterizada por movimentos involuntários repetitivos, tão tristes e constrangedores como os da Tourette.
Às vezes, fico imaginado o que minha mãe e meu pai pensavam quando me viam com os tiques. O que será que se passava em sua cabeça? Não devia ser fácil para eles ver seu filho sendo motivo de chacotas nas ruas e até dentro da própria família. Devia doer muito neles esse tipo de coisa. Na verdade, meu pai sabia muito bem o que eu iria enfrentar se continuasse daquela forma. Ele mesmo sofria o que chamamos de bullying desde sua infância quando, por uma dessas infelicidades da vida, contraiu sarampo e perdeu a audição, restando apenas 5% dela. Meu pai era lindo! Tinha olhos verdes e pele clara e sempre foi muito vaidoso desde a juventude. Presenciei alguns dos seus clientes gritando para que ele os ouvisse e, por trás, chamando-o desrespeitosamente de surdo ou moco, na linguagem local.
Como você pode ver, o bullying sempre esteve presente em minha vida. Morria de raiva quando zombavam do meu pai na minha frente e, principalmente, pelas suas costas. Ele não merecia aquilo. Acho que ele sentia o mesmo por mim. Meu pai me passava muita segurança quando criança e tinha o abraço mais acolhedor do mundo para mim. Sinto muito a sua falta e é por nós, ele e eu, que tomei a decisão de abrir a minha vida para diminuir o preconceito no mundo, mas principalmente no meu País.
Às vezes, não entendemos algumas atitudes nossas e só as compreendemos ao longo das nossas vidas. Já naquela época, eu tinha uma característica que se mantém até hoje: já acreditava na igualdade moral da sociedade, ou seja, não discriminava ninguém por nada. Não importava a cor de pele, classe social ou escolha religiosa. Essa atitude é própria dos meus pais. Nunca e em momento algum, tivemos qualquer tipo de educação discriminatória dentro de casa. Tive, sim, ótimos exemplos nesse sentido. Ambos nos passaram valores que nos seguem e estão impregnados em nossas consciências até hoje, graças a Deus, sendo repassados aos nossos filhos.
Tínhamos uma família unida. Os trabalhos de costureira e alfaiate permitiam a meus pais nos educar mais diretamente. Isso, infelizmente, teve um fim. Isso mudou toda a história da minha vida, da minha irmã Sandra e da nossa irmã caçula Silvaneide, sete anos mais nova do que eu.
04
Primeira grande mudança
Nossa vida em Altinho não era das piores. Tínhamos o mínimo de conforto em nossa casa. Meus pais se viravam como podiam para nos criar com dignidade.
Em 1977, uma mudança abalou nossas vidas. Como muitos nordestinos, migramos para São Paulo, em especial para a Grande São Paulo, numa cidade chamada Suzano, onde moramos até hoje. Nela conhecemos um frio absurdo e a péssima sensação de pássaros fora do ninho.
Primeiro, eu não conseguia fazer uma leitura clara do que estava acontecendo conosco e segundo, ainda era muito cedo para descobrir isso.
No início, tínhamos contato com nossos familiares que, por afinidade cultural e de interesses, nos receberam muito bem. Além disso, esperava ansiosamente pelo início do ano letivo. Quando isso aconteceu e fomos direcionados para a escola, senti minha primeira dificuldade real e perceptível para um menino de nove anos.
Naquela época, havia uma discrepância muito grande de ensino entre os Estados brasileiros. Minha irmã mais velha conseguiu, depois de um teste, seguir a série em que estava mesmo. Com muita dificuldade, mas sempre muito interessada em estudar, pôde se recuperar ao longo do ano. No meu caso, isso não aconteceu da mesma maneira. Quando nos mudamos, eu estava na segunda série e voltei para a primeira, pois não consegui me sair bem nas provas. Chorei muito por isso. Foi muito difícil aceitar a ideia de ser um aluno atrasado na escola e aguentar as comparações inevitáveis com minha irmã, que merecidamente tinha os reais valores exaltados por todos.
Mesmo voltando uma série, eu ainda tinha dificuldade de aprendizagem por ser hiperativo e ter uma enorme dificuldade de me concentrar em sala de aula. Consegui na época fazer muitos amigos, mas também sofri muito com o preconceito de alguns colegas que me chamavam de “baianinho”, “cabeça chata” e muitos outros apelidos que, graças a Deus, consegui esquecer e ficaram numa história que eu não faço questão de lembrar.
O frio nos judiou muito. Saímos de uma terra seca e quente para as geadas paulistas. Nos primeiros dias de Suzano, a imagem de pessoas encapuzadas me assustava muito, pois lembrava dos filmes americanos em que marginais de bairros americanos, como o Brooklin, andavam vestidos de algum modo parecido com aquele. Eu sentia muita saudade da minha pequena Altinho, que me foi tirada abruptamente. Senti-me perdido por muito tempo.
No primeiro dia de aula, tive o meu primeiro contato com os meninos da minha idade. Aos poucos, eu me enturmava, mas sentia na pele os primeiros constrangimentos que a vida me traria por toda a minha existência.
Hoje eu me considero uma pessoa importante. Não por ser escritor, mas por ser um modelo de pessoa que desceu do muro e pôs a cara a tapa, mostrando meus erros e acertos, para que outras pessoas tenham uma vida melhor que a minha.
Todos os dias, quando saio para trabalhar, penso naquilo que vou aprender por onde andar. Penso na minha família que fica aguardando a minha volta. Sinto a tristeza da minha filha e a coragem do meu filho ao cuidar das minhas meninas quando eu estou longe. Minha mulher já passou poucas e boas ao meu lado. Sentiu comigo o constrangimento público que passei em alguns momentos, quando olhava para trás em um supermercado, por exemplo, e via algumas pessoas rindo de mim pelas costas e guardava isso em seu coração para não magoar seu companheiro. Isso eu conto a você, meu leitor, porque daqui para frente neste livro você conhecerá partes da minha vida que eu mesmo não lembrava, partes de mim que a minha própria família não sabia ter acontecido. Mas guardarei para mim as coisas que poderiam constranger essas pessoas que são minhas verdadeiras companheiras na vida.
Voltando agora para o assunto que nos leva a este livro, tive na primeira série, aqui em São Paulo , uma pequena amostra do que viria depois. Muitos meninos não se aproximavam de mim no início. Eles riam de vez em quando do meu sotaque pernambucano. Na época, eu me sentia humilhado com isso. Mas hoje, refletindo melhor sobre o assunto, até que é normal alguma brincadeira com isso.
O engraçado é que, em 1982, voltamos para Caruaru, onde ficamos por um ano aproximadamente. E lá, senti a sensação oposta do preconceito. No instituto Monsenhor Bernardino, ainda trazia pequenos piscares de olhos, mas a minha alegria em voltar a Pernambuco era tão grande que quase não percebia qualquer comentário sobre o assunto, exceto de algumas pessoas da minha família que insistiam em querer amarrar meu braço para eu parar com aquilo.
Meses depois, voltamos para Suzano, onde eu tive aulas com Dona Hilda, a professora que me passou os maiores valores entre todas as pessoas maravilhosas que a vida me trouxe. Dona Hilda foi a melhor professora que eu tive na vida. Pena que estudei somente um ano com ela.
Já na quarta série, em outra escola, tive novamente que me justificar aos meus novos colegas de como funcionava o meu corpo e convencê-los de que eu era normal. Que, apesar das aparências, eu era normal. Estudei durante quatro anos nela. Lá fiz amigos que trago até hoje. Pessoas que se tornaram realmente importantes para mim. Outros foram amigos da onça e logo você entenderá por quê.
Naquela época, tínhamos em Suzano salões de baile, onde havia sempre ótimas matinês. Num deles, íamos sempre aos domingos à tarde e nos divertíamos muito. Havia entre nós um amigo de que eu gostava muito. Essa pessoa era realmente muito importante para mim, um daqueles amigos inseparáveis e de quem você sempre espera as melhores atitudes.
A época a qual eu me refiro foi justamente no início da minha adolescência. E eu estava começando a me sentir incomodado com algumas atitudes desse meu amigo. Na verdade, até hoje eu não entendo muito bem o que me prendia a ele. Agora você vai entender melhor o que aconteceu.
Minha doença começava a se agravar um pouco. O meu braço direito começava a ter vida própria. Eu não conseguia controlá-lo na maioria das vezes. Ficava muito nervoso quando estávamos conversando no pátio da escola e apareciam os movimentos sem controle. A maioria dos meus amigos não ligava mais para isso. Mas, meu amigo (o meu “melhor amigo”) me imitava diante dos outros, chamando mais a atenção deles para o meu problema.
Uma vez, eu me apaixonei por uma menina linda que sempre passava em frente a minha casa e cai na besteira de confessar-me para ele. Eu não sei se ele estava também apaixonado por ela. Um dia, uma colega da minha sala que tinha muita amizade com essa menina resolveu me apresentar de surpresa para ela, pois há meses eu a paquerava e parecia que ela retribuía.
Na verdade, eu tinha muita vergonha de mim mesmo. Achava-me feio e esquisito, como muita gente dizia que eu era. Infelizmente, acreditava nisso. Imagina se uma morena linda daquelas poderia sentir alguma coisa por mim, eu pensava. No dia em que minha amiga me apresentou para ela e nos deixou no meio do pátio da escola diante dos olhos de todos que queriam ver aonde isso iria dar, ele, o meu amigo, apareceu do nada e disse para ela que eu era gay e que ela não deveria me dar atenção.
Na hora me faltou o chão e eu não conseguia nem falar depois disso. Essa menina acabou ficando com um menino que era novo na escola e tinha mais coragem do que eu para assumir um relacionamento com ela.
Tempos depois, descobri que aquele meu amigo dizia para os outros que não passassem na minha casa para irmos às matinês, pois minha mãe não me havia deixado sair e eu não iria mais. Depois disso, eu não era convidado nem para as fogueiras que fazíamos sempre e às quais nunca faltei.
Essa foi uma parte da minha vida que eu preferi esquecer.
Na sétima série, meus pais decidiram novamente voltar para Pernambuco. Eu e minhas irmãs, mais uma vez, tínhamos que refazer as nossas vidas. Era mais uma despedida, era mais um recomeço. Como alguém poderia realmente ser normal sendo subtraído constantemente da sua zona de conforto que é tão importante para nós?
Chegando mais uma vez em Pernambuco, começou uma nova fase em minha vida. Naquela época, eu estudava na Escola Mario Sette. Nela, havia um sujeito que cismou com minha cara e insistia em imitar agora o meu sotaque paulista. Fazia isso em som alto e exibido. Fazia para que todos ouvissem e zombassem de mim. Durante muito tempo, consegui me conter e não reagir aos seus ataques, mas ele começou a me provocar fisicamente e pensei em pegar uma faca e feri-lo com ela. Mas eu nasci com uma coisa que me salvou muitas vezes, o dom do perdão. Resisti, embora cansado de suas agressões morais, até que algo de bom aconteceu.
Voltamos para São Paulo novamente. Mais uma vez, tivemos que nos reajustar a uma nova vida, formar um novo grupo de amigos. Era uma nova escola e, mais uma vez, tive que enfrentar a estranheza das pessoas que não me conheciam e não sabiam da minha vida e da minha situação.
Nessa época, as pessoas não tinham a menor noção do que eu tinha. Não havia qualquer tipo de divulgação sobre essa e outras doenças. Essas pessoas que viviam ao meu redor achavam que o que eu tinha era frescura, que isso não passava de mania minha, que eu poderia parar se quisesse. Chegaram até a me mandar amarrar o braço ao corpo. O meu esforço tinha o mesmo nível e a mesma proporção da cobrança das pessoas. Eu precisava parar com isso. As pessoas deviam ter razão. Muitas vezes, pensei seriamente que eu tinha um demônio dentro do meu corpo que me fazia me contorcer todo.
Muitas outras estavam ao meu lado desde que eu nasci e sentiam na pele a atitude de estranheza quando frequentávamos os locais públicos. Muitas delas chegaram a cortar alguns amigos de suas relações para me defender.
No começo da minha adolescência, fui deixado para trás por pessoas que se diziam minhas amigas na frente dos outros. Fui obrigado a aguentar suas palavras de desencorajamento e suas hipocrisias quando queriam parecer melhores do que eu. Ou quando queriam tirar algum proveito da minha capacidade intelectual em seu benefício, na hora de fazer trabalhos em grupo na escola, e depois que conseguiam o que queriam me deixavam de lado até o próximo trabalho.
No fim, estou eu aqui desabafando com você, meu leitor, que deve ter em algum momento passado por situações parecidas.
Dizem que pessoas bonitas geralmente são burras, isso é a mais pura mentira. Se levarmos em consideração, isso também é bullying. Quaisquer pessoas que sejam tratadas com indiferença, sob quaisquer tipos de alegação, devem ser consideradas normais, com os direitos e deveres que todas as outras merecem. No caso das menos privilegiadas, elas agem conforme a lei da compensação: se lhes falta beleza, por exemplo, não lhes são negados outros atributos, conforme o seu esforço em atingir seus objetivos.
05
Penúltima viagem
Em 1988, deixei minha terra e minha família e fui morar em São Paulo. Meu tio me recebeu e fui morar na Vila Guilherme, próximo de Santana. Vim de Pernambuco com um problema de saúde que veio se manifestar quando já tinha chegado.
Trabalhei em uma loja de sapatos na Rua Riachuelo e, depois de um tempo de muito sacrifício, consegui ir para uma empresa de segurança particular que atendia clientes com montadoras de automóveis. Infelizmente, eu trabalhava com rescisões de contrato de trabalho, sendo a sua maioria de guardas que vinham do Nordeste e que trabalhavam por um salário baixo para o risco que corriam. Quando pediam as contas, descontava-se o aviso prévio, deixando a rescisão zerada e o cara querendo me matar por isso.
Seis meses depois, fui trabalhar num dia de Carnaval. Ao meio-dia, depois de comer minha marmita, comecei a passar mal e não conseguia levantar o meu corpo por inteiro. Pedi para ir embora e, quando estava chegando ao ponto de ônibus na Praça Princesa Isabel, comecei a vomitar. Para meu azar, vomitei e cai no chão, numa calçada, e uma mulher desceu as escadas com uma vassoura na mão e passou a me bater sem parar, chamando-me de bêbado, pois se tratava de um dia de Carnaval.
Como você pode ver, isso não tem nada a ver com bullying, mas é uma parte da minha história que não consigo ignorar. Nessa ocasião, tive que ser operado, pois fazia quinze dias que meu apêndice tinha se rompido e, para minha sorte, consegui escapar vivo dessa.
Voltei mais uma vez, inconformado, para Pernambuco, para me tratar, e fui para Altinho, onde minha família havia voltado a morar. Cheguei tão debilitado que, com meus 1,80m, pesava 58kg. Estava muito magro para a minha altura.
Não demorou muito, voltei para São Paulo, especificamente falando para São Caetano do Sul. Depois de um mês, a dona do quartinho começou a reclamar para os meus primos da minha presença. Ela não queria mais ninguém morando ali. Fui, então, para Itanhaém, onde morava um antigo patrão da minha época de office-boy em Suzano. Ele me arrumou trabalho e moradia numa padaria sua. Era a primeira vez que eu me sentia responsável por mim mesmo. Sou muito grato a esse homem por tudo o que fez por mim. Algum tempo depois, consegui ser caseiro de um casal de idosos que me trataram como filho e que me instruíram para a vida e, logo depois, fui trabalhar como barman em um hotel, na Praia dos Sonhos, onde fiquei por quatro anos.
Na minha juventude, esse foi o momento mais feliz da minha vida. Itanhaém foi para mim o segundo lugar que mais me fez feliz. Lá o meu nível de estresse era mínimo. Todo dia eu tinha duas horas de almoço, mesmo em temporada, para mergulhar na praia e descansar meu corpo e minha mente. A síndrome não me incomodava nessa época. Lá, fiz muitos amigos e tinha constantemente festas maravilhosas para ir. Fazíamos fogueiras na praia também, conhecidas como lual. Trabalhávamos muito em temporada, mas, mesmo assim, tudo era muito bom. Em Itanhaém, tive alguns sinais de onde poderia surgir minha alma de escritor. Tive uma professora de português – a quem ninguém dava o devido valor – que exigiu muito de mim. Vou continuar mantendo a regra de evitar falar nomes, para não ser injusto com alguém.
No hotel, eu ganhava muitas caixinhas e consegui juntar algum dinheiro. Eu não sabia, mas estava preparando o futuro da minha família. Quando terminei o primeiro ano do colégio, minha mãe ficou extremamente doente em Pernambuco e tive que mudar os meus planos e deixar o meu paraíso para trás. Consegui trabalho em São Paulo e, com o dinheiro que consegui juntar, deu para alugar a mesma casa em que morávamos em Suzano antes de irmos para Pernambuco.
A Síndrome de Tourette é movimentada pela emoção. Há em nosso cérebro um campo chamado pálido lateral que, se desequilibrado, envia uma enorme quantidade de eletricidade para o campo da emoção, numa velocidade tão grande que o outro lado não consegue se defender, gerando assim os tiques. Nessa época, eu estava muito estressado, e imagine só como fiquei depois disso.
Depois de algum tempo, conseguimos nos reorganizar mais uma vez e fui trabalhar numa fábrica que me trouxe as minhas primeiras grandiosas experiências profissionais que me servem até hoje.
Anos depois, conheci minha mulher. Nela encontrei alguém que me aceitou de verdade, enfrentando um monte de preconceituosos que se opunham ao nosso namoro por causa da síndrome. Antes dela, tinha namorado uma moça que foi obrigada a terminar o namoro comigo, pois seu pai não queria que seus netos nascessem com o meu “defeito de fabricação”, segundo ele.
Eu e minha mulher passamos juntos por um monte de dificuldades na vida. Ela segurou sua onda ao meu lado, ela sim, conseguiu superar a barreira do preconceito que insistia em bater a minha porta.
Numa dessas dificuldades que passei na vida, fui a São Miguel paulista, bairro de São Paulo, para vender pequenas cartelas de utensílios domésticos em mercadinhos e bares da região.
Uma situação constrangedora: um desses meus clientes me viu numa das crises da síndrome e me chamou para conversar na cozinha do seu bar, longe dos seus clientes. Disse que eu estava ficando louco em andar desse jeito. Eu não entendi no início o que ele queria dizer, mas depois ele me confessou de fato o que pensava. Ele achava que eu estava usando drogas e isso era o motivo dos tiques. Em sua cabeça, eu era usuário de cocaína ou craque e, muito tempo depois, eu descobri que os sintomas eram parecidos. Expliquei para ele o que acontecia comigo e ele, sendo boa pessoa e tendo desejado me ajudado, pediu um milhão de desculpas por ter me ofendido. Entendidos, segui minha viagem e, cada vez que eu voltava para repor mercadoria, ríamos muito daquela situação já superada por nós.
Eu tinha grande dificuldade em me firmar em empregos que exigiam que me mantivesse entre paredes ou sob regras duras em quaisquer aspectos. Por isso, tive que improvisar durante muito tempo, conseguindo sobreviver com vendas de alguns produtos, dependendo do meu próprio esforço e organização. Essas situações foram paliativas. Não tinham muito sucesso e muitas vezes eu paguei para trabalhar. Cai em descrédito com a família que, por várias vezes, teve que me sustentar.
06
O dia em que meu nome mudou
Depois de trabalhar como motorista, encarregado de obras e corretor de planos de saúde, tive a minha primeira experiência em produção. Depois de muitos anos de tentativa, um amigo me levou para trabalhar em uma metalúrgica. Era um sonho para todos os garotos do meu bairro trabalhar ali. Lembro-me que quase não dormi de tanta ansiedade no dia anterior. Era para mim a maior empresa, em que eu sonhava na época trabalhar. E digo-lhes que trabalhei até em multinacionais depois e nenhuma conquistou em meu coração um lugar tão especial quanto ela.
Primeiro dia de trabalho, sete horas da manhã, esperei por mais de uma hora na portaria até ser posto para dentro da fábrica. Não preciso nem dizer que os tiques estavam para lá de acelerados naquele dia, eu mal conseguia me manter em pé. Depois de uma semana de treinamento no horário comercial, fui escolhido para trabalhar, logo na segunda semana, no período noturno da expedição. No primeiro dia, cheguei acompanhado de mais um colega. Fomos recebidos pelo encarregado do setor e imediatamente encaminhados para a expedição e apresentados aos colegas que, ao me virem com os tiques, cutucaram-se uns aos outros. E, para meu azar, percebi aquilo, o que piorou a minha situação. Tentei segurar os movimentos e até consegui algum resultado, no entanto, quando cheguei em casa, logo pela manhã, não havia uma parte do meu corpo que não estivesse doendo.
Passada mais uma semana, ficamos mais íntimos, eu e meus colegas. Mas fui surpreendido por um cochicho no refeitório e, quando perguntei o que estava acontecendo, eles riram e desconversaram. Voltando ao trabalho, continuei insistindo em saber o que havia acontecido, por que quando olhavam para mim eles riam sem parar. Aquilo estava me incomodando muito e, por mais que eu tivesse bom humor, não conseguia mais aceitar aquilo. Depois de muito insistir, um dos rapazes resolveu falar. Disse que todos riam porque um dos colegas comentou que quando eu chacoalhava o meu braço direito parecia um galo batendo asas e escavando o chão do terreiro.
Naquele instante, a única reação que eu poderia ter era simplesmente rir. Rir porque não sabia o que fazer, rir porque não sabia o que dizer e porque, pensando bem, de vez em quando eu realmente parecia um galo batendo asas.
Naquela noite, continuei trabalhando normalmente. Aguentei as gozações, os olhares e, para minha tristeza, no outro dia, não só as pessoas da minha seção riam, todos os outros funcionários do período noturno olhavam assustadoramente para mim na espera de verem os tiques e gargalharem depois que eu não conseguisse mais segurá-los. Às vezes, eu estava embalando ou separando algumas notas, quando ouvia gritos de longe, dados por alguns covardes que se escondiam atrás dos pilares ou de algumas coisas e bancadas, chamando-me de Galo e rindo em seguida. Pensei por algumas vezes em pedir as contas e sair daquela fábrica, mas lembrei que, em todos os lugares pelos quais passara até então, havia sofrido com coisas parecidas. Sair de mais um emprego não melhoraria minha vida.
Desse dia em diante, tomei uma decisão: “vou trabalhar mais do que os outros, vou ignorar essas agressões infundadas e desumanas”. E foi isso que fiz.
Passados dois meses de trabalho, fui chamado para cobrir férias de um rapaz do turno da manhã. Quando faltava uma semana para voltar para o noturno, o encarregado me chamou em sua sala e pediu para ficar mais um mês no diurno, pois eu tinha uma boa caligrafia e um baixo índice de erros. Meu plano estava dando certo. Seguindo os conselhos de minha mãe e minha tia Lourdes, segurei minha onda e mantive-me tranquilo e dedicado.
Numa dessas manhãs inspiradas por Deus, reencontrei um amigo de infância que ainda não sabia que eu estava trabalhando na fábrica. Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo naquele momento da minha vida mas, para quem acredita nisso, ali estava a mão de Deus.
Uma semana depois, o encarregado que havia me pedido para continuar no setor me chamou para perguntar se eu gostaria de mudar de setor. Eu gostava do que estava fazendo. De vez em quando, ficava até o início do período noturno para passar alguma entrega especial e reencontrava o pessoal gozador que nem me olhava nos olhos. Tratavam-me como um estranho e diziam que eu estava demorando demais para voltar para a noite. Depois que eu passava o serviço, seguia meu caminho em paz, lembrando de dois meses antes, quando eu era o motivo de chacota do período noturno.
Passado mais um mês, fui chamado à sala do meu chefe mais uma vez, onde o meu amigo de infância me esperava com um papel na mão para eu assinar. Quando perguntei do que se tratava, eles disseram que era o pedido de transferência. A partir daquele momento, eu não era mais funcionário da expedição da fábrica, havia sido requisitado pelo setor de vendas. A partir daquele dia, mudava a minha vida na fábrica e começava ali a minha história de amor por aquela que, até hoje, foi a empresa em que mais aprendi e evolui na minha carreira profissional. Fiz no novo setor grandes amigos, que convivem comigo até hoje, e nossos filhos são amigos como fomos no passado e continuamos a ser, graças a Deus.
Trabalhei duro por muito tempo e cheguei a virar noites fazendo horas extras sem sentir o menor cansaço por isso. Paixão. Esse é o nome que dou para aquela época da minha vida.
Um ano depois, fui solicitado para a central de atendimento ao cliente para fazer o mesmo serviço, só que no setor onde os funcionários tinham os melhores salários. No início, fiquei muito feliz com aquilo, mas depois de algum tempo um dos colegas que tinha muita força política no setor começou a imitar os meus tiques. Era um desses caras que só se sentem felizes se alguém for ferido no meio do caminho. Não era um cara mau, nunca foi, mas o seu humor negro era algo assim assustador.
Na época, ainda usávamos muito a máquina de escrever e eu era responsável por preencher os formulários para depósitos de pagamento dos vendedores de todo o País. Nos dias de pagamento, varava a noite fazendo isso.
A fábrica produzia dobradiças e ferragens para a construção civil e, numa dessas ocasiões, por volta das 2 horas da madrugada, fomos surpreendidos pelas sirenes de carros de polícia. Um funcionário que tinha ficado fazendo hora extra no meu antigo setor foi abordado pelos policiais e, para seu azar, encontraram várias dobradiças enroladas em papelões, que chamávamos de cartelas, por todo o seu corpo. O que aconteceu no dia seguinte? Demissão. Por justa causa. Como os donos da fábrica são pessoas altamente generosas, não prestaram queixa na delegacia e ignoraram as formalidades do roubo.
Você já conheceu a minha primeira parte naquela empresa, quando consegui vencer os preconceituosos sem provocá-los diretamente, sem corresponder a suas agressões e, principalmente, à falta de noção com relação aos sentimentos dos outros em que o pensamento coletivo age sem a menor noção de compaixão.
Agora, no próximo capítulo, você verá que ainda não aconteceu nada. Que isso que você viu até o momento foi só um pequeno aperitivo da maldade humana que me cercava naquela época.