quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Medalhão de Niceia


16
O almoço com Mohamed


P
or volta das 12hs da manhã, Alli chamou, com um bater de palmas, o grupo que estava apreciando as dependências do pequeno palacete de Mohamed.
- O almoço esta à sua disposição, senhor Mohamed. – disse com servidão.
- Venham, meus amigos. Chegou a hora de degustarem outras maravilhas do oriente.
- Seu Mohamed, quantos escravos o senhor tem na sua propriedade? – perguntou Aline curiosa.
- Psiu! Não diga escravos aqui dentro, menina. Isso deve ser dito nos becos e nas ruas da cidade. Somos uma cooperativa de amigos que se ajudam. Meus colaboradores trabalham com conforto e decência e os mantenho da maneira mais digna. Aqui, chicotes e outros acessórios de castigo só servem de objetos de decoração ou para iludir os romanos. Em nossas propriedades essas pessoas são parceiras e nunca escravos. Agora vamos nos alimentar.
Seguiram por corredores longos e ajardinados. Havia, em sua extensão, pequenas piscinas d’água limpa que serviam como objeto de decoração. Vasos imensos com pequenos arbustos de plantas frutíferas também ornamentavam os corredores do palacete de Mohamed.
Chegando ao ambiente suntuoso, uma mesa imensa e móveis rústicos, porém de muito bom gosto, preenchiam o centro da sala. Nas laterais, oito vãos arqueados de colunas arredondadas permitiram enxergar ao longe o céu limpo, com algumas nuvens algodoadas de beleza sem par.
Depois de acomodados, Mohamed pediu sua atenção para que fosse feita a oração habitual para o almoço. De olhos fechados e com sentimento de gratidão disse:
- “Querido e amado Deus. É com profundo prazer que recebemos em nossa humilde morada os nossos irmãos vindos de um mundo distante, mas que lutam pelos mesmos objetivos de nosso conselho e compartilham do sentimento de renovação pacífica da humanidade. Espero que nosso alimento seja abençoado e que sejamos santos em nossas atitudes perante a vida e os nossos sentimentos. Que nossos erros sejam menores que nossas virtudes e que os benefícios gerados por nossas atitudes sejam infinitamente maiores que nossa vaidade humana. Pedimos humildemente sua permissão e sua bênção para nos alimentarmos da carne e do pão, como o sagrado maná enviado na travessia do deserto! Amém!” Podemos nos servir, amados irmãos. Sintam-se à vontade. Bom apetite!
Depois de alguns minutos, Mohamed, observando que seus visitantes haviam se fartado da saborosa carne e do bom vinho, quis saciar sua curiosidade sobre o tempo do qual os amigos tinham vindo.
- Minha linda amiga, Aline! Eu gostaria de saber um pouco mais sobre você e sua aldeia.
Rindo, Aline começou:
- Desculpe o riso, amigo Mohamed. Todos nós aqui somos de um mesmo país chamado Brasil, porém, cada um de nós veio de uma cidade diferente. Eu e Jorge Lúcio viemos de São Paulo, um grande estado, cuja capital tem o mesmo nome. É uma cidade enorme, com milhões de habitantes, de grande progresso; por isso, é engraçado ouvi-lo chamá-la de aldeia. Eu sou neta de japoneses, habitantes de um país chamado Japão, mas meus pais nasceram no Brasil. Somos de uma religião chamada Budismo, que surgiu na Índia, com os ensinamentos de Siddharta Gautama, o Buda, por volta de setecentos anos anteriores ao seu período atual, ou seja, aproximadamente 400 anos antes de Cristo. O Budismo, embora tenha sido iniciado na Índia, teve varias escolas posteriores como a chinesa, japonesa, tibetana e outras mais. Cada uma adaptada ao entendimento e evolução de seu povo. Acreditamos que existem dois infernos: o quente e o gelado. Praticamos o respeito à natureza divina e humana. Temos orações especiais. O nosso maior objetivo é a busca incessante da nossa iluminação espiritual através da meditação e da pratica de boas atitudes em relação ao Todo Divino.
- Interessante! - disse Mohamed. É muito saudável e inteligente. E quanto à sua, Antônio?
- Eu sou um cristão evangélico pentecostal. Moro numa cidade chamada Rio de Janeiro que é uma das maravilhas do mundo moderno. Sou um ex-presidiário que me converti a Jesus dentro da prisão. Sou pai de dois filhos. Minha religião deriva do protestantismo, que teve origem por revolta de um sacerdote chamado Martin Lutero, indignado com os abusos dos católicos romanos. Somos seguidores de Jesus e de seus maravilhosos testemunhos deixados num santo livro chamado Bíblia. Não acreditamos em reencarnação, nem em santos. O nosso grande propósito é combater o mal, personificado no diabo, que é um sujeito inteligente e astuto e vive à espreita, induzindo-nos ao erro e à perda da salvação. Temos nossos profetas e as nossas escolas são também muito variadas.
- O que são pentecostais, meu filho? – disse Mohamed.
- São igrejas que usam o fogo do Espírito Santo para queimar os males da humanidade. Vivemos revelações proféticas e falamos em línguas estranhas.
- E você, Maria Lúcia? O que segue? – continuou Mohamed.
- Eu sou natural de um estado chamado Pernambuco. Tornei-me espírita kardecista quando perdi minha filha, que morreu de uma doença degenerativa. Encontrei nesta religião respostas para muitas perguntas que eu tinha em relação a essa perda que eu classificava como injustiça divina. Seguimos também os princípios cristãos da caridade e do amor ao próximo. Acreditamos na reencarnação e este é o principal requisito para ser considerado espírita. Outras escolas, que nós chamamos de espiritualistas, também existem em nosso meio, que são classificados conforme suas práticas e seus rituais. Fomos fundamentados em cima dos estudos de um pedagogo francês chamado Allan Kardec que, pesquisando a fundo as manifestações espirituais por todo o mundo, codificou a terceira revelação divina que chamamos de O Consolador, à qual Jesus se referia em sua passagem pela Terra. Acreditamos que Jesus é o espírito mais elevado da Terra e, em nosso entendimento, Deus o colocou como o governador de nosso planeta. Ao contrário de algumas religiões, não acreditamos em final do mundo e, para nós, o julgamento “final” é feito sempre que passamos de uma vida a outra. Concordamos com os budistas no que se refere às leis do carma e à iluminação interior, as quais nos levam a uma condição melhor de existência.
- E você, Júlio? – continuou Mohamed.
- Sou baiano por natureza. A Bahia é um estado onde se confundem as religiões. Metade africana é minha cidade chamada Salvador e o lado católico, não resistindo, decidiu vestir-se de África também. Eu sou católico apostólico romano. Minha igreja vem da promessa de Cristo de que a sua igreja seria assentada na sua pedra fundamental chamada Pedro, que dá nome à nossa basílica principal em Roma, no centro da qual há um país independente chamado Vaticano, onde vive nosso líder maior, chamado Papa. Não acreditamos em reencarnação e somos adeptos dos santos como principais auxiliares de Deus e Jesus e, ao contrário do que outras religiões afirmam, não adoramos imagens, mas rendemos graças aos santos a que se referem. Também, assim como os evangélicos, acreditamos na Santíssima Trindade. Não praticamos línguas estranhas, pois aprendemos nas cartas de Paulo que diziam: de que vale falar as línguas estranhas se não sabemos o que elas dizem? Temos sacramentos como: batismo, primeira comunhão e crisma e, aos poucos, estamos nos adaptando aos tempos modernos. Somos continuamente criticados por pessoas que insistem em culpar nosso clero atual pelos erros passados da Roma Católica, que promoveu verdadeiras tragédias na humanidade em nome de Deus.
- Agora chegou a sua vez, irmão Jorge Lúcio. Diga-nos o que segue. – consentiu Mohamed.
- Eu sigo o vento que sopra meu corpo e o meu rosto nas madrugadas frias de São Paulo. Durmo nas calçadas, ou embaixo de marquises de prédios. Cubro-me com folhas de árvores ou jornais velhos. Sigo o caminho da fome e da miséria humana. Aceito qualquer tipo de ajuda desprovido de imposições religiosas. Muitas vezes, pessoas vêm nos abordar para falar de um Deus justo e mágico, que nos deixa nas sarjetas, e querem que primeiro aceitemos Jesus, para depois nos darem o que comer. Como pode um homem, que mal consegue levantar o seu corpo, acreditar na justiça de alguém que nos envia um monte de importunos para nos tirar de nossa miséria pessoal, sem compreender o que passamos? Vêm nos falar da travessia de Moisés no deserto, sem conhecer o deserto de emoções que vivemos dia a dia. Comigo pouco me preocupo, mas vivo o desespero de amigos, que morrem em meus braços, sem que haja um local para enterrá-los dignamente. Como poderia acreditar em vida após a morte, se não consigo compreender, na maior parte do tempo, se estou vivo ou morto? Como poderia crer em Darma ou Carma, se eu não consigo compreender nem o que estou fazendo neste planeta imundo e cheio de sofrimento? Todos querem recuperar o planeta, a auto-estima, a economia e uma infinidade de outras coisas e esquecem que o que precisa ser mudado é a alma humana, antes que não sobre mais tempo para isso. Em mim não há memória, por não saber quem sou e nem de onde venho. Em mim não há sentimento, por não sentir a presença de uma família como pais e irmãos. Em mim não há esperança, por não entender como algumas pessoas são tão ricas e outras vivem desumanamente em locais tão miseráveis. Eu não consigo entender como pessoas tão inteligentes, tão instruídas, podem ser tão mal educadas algumas vezes, infelizes e egoístas quase sempre e outras pessoas, que receberam pouca ou nenhuma instrução, conseguem ser felizes em seus instantes de miséria pessoal e ainda serem generosas com seus irmãos. Vejo igrejas lotadas de pessoas doando o que têm para ajudar seus padres e pastores a comprar o cantinho do céu e outros queimando dinheiro com despachos que largam nas encruzilhadas, deixando de dar alimento para quem tem fome. Vejo loucos gritando em seus templos e outros chorando de fome nas ruas. Vejo bocas falando o nome de Jesus à toa e depois, amaldiçoando os que não seguem suas crenças. Eu sou mais eu, por enquanto, até o dia em que eu me reencontrar com Deus e, desse dia em diante, talvez, tudo seja diferente!

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