Capítulo 02
O mistério do Una!
Os dias foram se passando, as crianças faziam
novos amiguinhos e um novo grupinho se formava.
Familiarizavam-se com a cidade e as brincadeiras das
crianças da cidadela, acostumados que estavam com
joguinhos de videogame, skate, patinetes e outras
brincadeiras das grandes cidades.
Em Altinho, conheceram brincadeiras de roda,
passa-anel, quebra-panela. Nesta, pendura-se em uma
árvore uma panela de barro recheada de doces, balas e
muita farinha de trigo, dá-se um cabo de vassoura para
um sorteado e vendam-se os olhos dele como na
cabra-cega. Daí, então, é só girá-lo e torcer, ajudandoo
a acertar a panela para quebrá-la, pular e encher o
bolso de doces e balas. É muito bom também brincar
de esconder, tendo para isso toda uma cidade como
cenário. É só demarcar os limites de distância e usar a
aguçada imaginação que toda criança tem.
Mais e mais dias se passavam e iam chegando
na cidade novas figuras interessantes. Um carioca
espertíssimo, cheio de conversa, gerando uma desconfiança
geral por parte dos moradores. Eles achavam
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que havia algo de errado com aquele sujeito, mas
também se perguntavam sobre um certo forasteiro que,
ao contrário do carioca, falava pouco, nada dizia do
seu passado nem sobre sua origem. Era educado e se
preocupava muito com a zona periférica da cidade,
onde havia muita miséria e desocupação.
Inconformado com aquilo, tentava reanimar o povo
com discursos que, embora serenos e recheados de
sensatez, já haviam chegado aos ouvidos do prefeito
da cidade, um quase imperador real altinense, cheio
de cerimônias e formalidades, o Seu DIMAS PONTE
PRETA, muito conhecido popularmente por Seu Teta,
por exagerar nas mamações no Governo Municipal.
Bem, mas como em todo lugar existe também
a turma do bem, havia o Padre Miguel, que era o viceprefeito
e um intelectual conhecedor de política,
botânica, sociologia, bem como o principal articulador
de um abaixo-assinado contra a empresa do irmão do
prefeito, que ficava às margens do Una, pela falta dos
equipamentos necessários para manter a qualidade da
água do rio e reerguer a velha vila dos pescadores.
– Bom dia! Cadê os meus bebês? Venham ver
o que o vovô trouxe para vocês.
– Oba, oba, é o vô, Ti! Sua benção, vô.
– Deus os abençoe, filhos.
– O que você trouxe, vô?
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– Trouxe uma jaca maravilhosa, enorme e
muito gostosa, vamos experimentá-la?
– Vamos!!! – responderam, alegre e curiosamente
os garotos.
Enquanto comiam a deliciosa jaca dura que o
vovô trouxera, comentavam sobre o ocorrido na
cachoeira do rio:
– Filhos, sobre o que vocês viram naquele dia
no rio... Por acaso, vocês comentaram com o papai e a
mamãe?
– Não, vô – respondeu o garoto. – O velhinho
do rio pediu para não falar nada para ninguém por
enquanto, pois um mistério está rondando a cidade e
só depois que ele for revelado deveremos falar sobre o
que vimos.
– Mas quando ele lhe disse isso? – perguntou
o velho.
– Agora, vô.
– Como assim?
– Olha ele, vô.
– Onde?
– Sentado no pé de goiaba no canto do
quintal. Você não está vendo?
– Não, meu netinho, acho que não posso
vê-lo.
– Pode, sim, vô! Ele disse que é só olhar para
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dentro de si que o verá em seu coração. Mas, para isso,
precisa purificar seu espírito, porque só assim mais
claramente o verá.
– Como ele é?
– Usa uma roupa estranha que eu nunca vi
antes, tem cabelinhos bem branquinhos, vive rindo,
tem olhos bem fechadinhos e, além de sempre estar
segurando uma flor diferente a cada vez que aparece,
sai de dentro da barriga dele uma luz muito forte que,
se você ficar muito tempo olhando, chega até a fazer
doer os seus olhos.
– Meu Deus, o que é isso? O que está acontecendo
aqui?
O mistério ficou no ar, o avô ficou muito
intrigado com a descrição que o neto havia feito. Parecia
tudo muito fantasioso, mas como um garotinho de
seis aninhos poderia ter tal imaginação? Se era uma
criação de sua mente fértil, por que sua irmãzinha
ficava olhando para o mesmo ponto a que ele se
referia e acenava continuamente como se brincasse com
alguém. Mal acabara o velho de fazer a si mesmo tais
perguntas, ouviu-se um barulho repentino, estridente
e quase vulcânico, soando no sentido da praça.
A cidade imediatamente entrou em pânico. Foi um corre-corre geral, o medo tomou conta de todos.
O papai e a mamãe, que estavam na cozinha a prepa32
rar um delicioso almoço domingueiro, desceram
correndo as escadas até o quintal, à procura dos
pequenos, que estavam abraçados ao avô embaixo do
pé de goiaba. Outro fato inexplicável, porém, ocorrera
neste momento: como podiam estar já debaixo do pé
de goiaba, se no momento do estrondo estavam a
conversar sentados ao pé da escada?
Mistééééééééério!!!!
Uma vez tranqüilo quanto à segurança dos
filhos e do pai, o Seu José saiu à procura de uma
explicação para o tal barulho. A cidade toda estava em
polvorosa. Alguns diziam que fora um terremoto. Outros,
fanáticos religiosos, que era o fim do mundo. E
muitas outras coisas foram ditas em praça pública. Na
verdade, o que acabara de se instalar na cidade era um
espírito do mal, que buscava naquele local pacato o
cenário ideal para constituir o seu universo maligno,
sendo que a própria natureza poderia fazer parte de
sua conspiração destrutiva.
Na praça, onde toda a cidade resolvera se
reunir, encontravam-se os diversos setores da
sociedade altinense. Naquele instante, havia um sentimento
de insegurança total e ninguém conseguia
chegar a conclusão alguma.
Pediu, então, o prefeito para sua secretária,
Dona Coca, que lhe buscasse um microfone e uma
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cadeira. De imediato, foi Dona Coquinha à procura dos
tais, para satisfazer mais uma vontade do seu querido
e adorado chefinho. Pouco tempo depois, voltava ela
com seus assessores, para deleite do prefeito, que em
seguida subiu na cadeira e iniciou um inflamado
discurso.
– Queridíssimos e preciosíssimos eleitores, eu,
o seu prefeito, o homem que serve à população como
uma ovelha serve ao seu pastor, um homem de uma
índole irrepreensível, capaz de transpor os sete mares
para salvar o seu povo e libertá-lo das garras dos faraós,
homem eu, capaz de buscar no inexplicável as mais
consistentes explicações para apascentar o meu povo,
prometo, diante do Cristo Crucificado da nossa Igreja
Matriz, que em poucos dias traremos profissionais
especializados, os mais renomados cientistas do País,
para descobrir o que aconteceu neste dia. Agradeço a
vossa atenção e certifiquem-se de que este humilde
servo estará dia e noite trabalhando em benefício do
seu povo. Obrigado, obrigado, obrigado! – E meneava
a cabeça, como se estivesse sendo aplaudido.
Porém, aos cochichos estava toda a praça,
apreensiva com a situação e contestando secretamente
o discurso do prefeito. Sabiam eles que daquele mato
costumava nunca sair coelho.
Ao voltar para casa, o Seu José encontrou
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também voltando o Seu Airton, o famoso forasteiro do
qual se ouvia muito falar por seus feitos junto à
população da pequena periferia da cidade.
– Como vai o senhor, tudo bem? – perguntou
o Seu José.
– Tudo – respondeu.
– O que o senhor achou do discurso do nosso
prefeito?
– Que tipo de resposta o senhor espera ouvir,
a mais sincera ou a mais lógica?
– Aquela que me convença e me ajude a
chegar a alguma conclusão, pois sinceramente não
estou ainda muito convencido de muita coisa que vi e
ouvi nesta manhã.
– Bem, nunca passei por experiência parecida
e confesso que também nunca ouvi um discurso tão
improvisado e sem base quanto o que acabamos de
presenciar. Desde que cheguei a esta cidade, tenho
conhecido muitas situações diferentes de tudo o que já
vi por onde passei. Há aqui um povo forte, capaz de
trabalhar em diferentes atividades e buscar com os seus
próprios recursos suas também próprias soluções. Mas
há também uma terra fértil e inutilizada. Cortando a
cidade, um rio lindo mas poluído, que poderia ser
tratado e transformado em meio de sustento para o
povo. E, para terminar e piorar toda esta situação, um
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líder pretensioso e arrogante, que tenta transformar em
trunfo político a desgraça de seu próprio povo.
– Puxa, é realmente muito clara a sua linha de
pensamento, mas muito perigosa também. Por isso,
meu amigo, evite ser tão claro publicamente em suas
idéias, pois, em lugares pequenos como este, não
podemos confiar em muitos. Tem muita gente que se vende por uma dentadura, uma bicicleta e outras
pequenas coisas, como sabemos. De qualquer forma,
foi muito bom conhecê-lo e saber que o meu povo tem
a seu lado um novo líder, alguém que tem bagagem
suficiente para organizá-lo.
– Seu José, o senhor já foi político, líder comunitário
ou mesmo um líder religioso?
– Não, caríssimo, estas coisas sinceramente me
põem medo. Mas me refiro a esta gente como “meu
povo”, pois vivi muito tempo longe daqui e passei por
muitas necessidades também, por isso falo com
segurança e conhecimento de causa. Assim, deixo
formalizado, neste momento, meu convite para um
jantar em minha casa, para que possa conhecê-lo
melhor e o senhor conheça minha família. Tenho
certeza que começa aqui uma grande amizade e,
quando o senhor menos esperar, estarei na periferia
para conhecer melhor seu trabalho com o nosso povo.
– Claro, faço minhas as suas palavras e aceito
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o seu convite, que seja feito assim. Até logo.
– Até.
Saíram os dois, cada um para seu destino,
felizes por conhecerem um ao outro.
Chegando o Seu José a sua casa com as
novidades ocorridas na cidade, falou para sua amada
esposa sobre o forasteiro misterioso que acabara de
conhecer. Ela o aconselhou a não se empolgar muito
com aquela nova amizade, pois já haviam passado por
muitas decepções no passado, com amizades e
parentela, e por este motivo prevenia ela o marido.
Ainda assim, o jantar aconteceu alguns dias depois e
foi muito agradável para todos